sexta-feira, 9 de julho de 2010

Identidade

Olha para fora de si e o que vê é o reflexo do que dentro de si existe. No entanto, quando olha para dentro de si, o que vê não é mais do que o reflexo do que existe fora de si.

Nem sempre foi assim, este jogo de palavras e de espelhos que mais não fazem do que empurrar imagens de um lado para o outro. Sim, alturas houve em que existiam janelas e, para além destas, a transparência da descoberta. Ou assim o imaginava. Com o passar do tempo, a limpidez do vidro tornou-se baça, impenetrável, reflectiva. O que nos traz de volta aos espelhos.

Mas deixemos, por agora, a velha história do ovo e da galinha. Tudo começou quando alguém mais incomodado com algo que ele disse, logo se apressou a rotulá-lo: «loucura!» »Meras palavras desconexas, consequência de alguma perturbação psíquica?« - interrogou-se. Lembrou-se do que pensou quando, ininterruptamente, leu o Passagem das Horas, de Álvaro de Campos: »por quantos estados de loucura será preciso passar para dizer qualquer coisa deste género?« Sentiu-se infinitamente pequeno, mas, ao mesmo tempo, desmedidamente lúcido.

De facto, talvez seja mais fácil apelidarmos os outros de loucos, quando o que ouvimos nos incomoda. Bem menos penoso do que medirmos sentimentos, distinguirmos realidades e, com isso, corrermos o risco de descobrirmos alguma ponta de verdade em palavras semelhantes, alojadas dentro de nós. Para quê desenterrar os mortos, reviver pesadelos, ser de novo marioneta nesse jogo viciado de reflexos? A abstracção é um mecanismo de defesa bastante eficaz. Também ele chegou a essa conclusão.

Por vezes, idealiza um tempo regressivo, um espaço em implosão constante, uma espécie de catabolismo permanente, na esperança de que daí surja, sem qualquer dúvida, uma identidade. Nunca o conseguiu. Talvez lhe falte alguma perturbação psíquica específica para lá chegar. Ainda leu os primeiros capítulos de A Identidade, de Milan Kundera, mas o que conseguiu foi precisamente o contrário daquilo que pretendia. Encerrou o livro ao capítulo 7, antecipou um final trágico e arrumou com o assunto.

Talvez seja este o seu maior problema: antecipar finais trágicos. Sim, porque não imaginar um final feliz para aquele pobre casal, cuja insegurança o mergulhava em questões existenciais? Com certeza que concordarão comigo. Como não concordar comigo numa coisa destas? Até ele próprio, que aqui e agora vou retratando, havia de concordar comigo, se me ouvisse.

Uma vez confessou-me que era nas palavras que mais contestava que procurava um argumento sólido que subitamente desfizesse toda a sua teia de questões complexas. Mas presumo que seria preciso que tais palavras se materializassem para que as ouvisse ou visse, deveras. »Ver para querer? Não, ter para crer« - concluiu. O que não é nada fácil, diga-se, pois para ter há que crer... e querer.

É um ciclo vicioso que, à semelhança dos espelhos, nos faz dar voltas e mais voltas, até que alguém nos chame loucos (ou simplesmente nos ignore - também a indiferença é um mecanismo de defesa extremamente eficaz). Assim, não foi de estranhar que tivesse abandonado o texto logo nas primeiras linhas, e, indiferente ao que quer que fosse, tivesse partido para a abstracção.

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