quarta-feira, 24 de junho de 2009

S. João

E fogo de meia-noite, e reflexos de vozes no rio, e
carrinhos de choque, e matrecos, e
ginjinha, e sorrisos de pipocas, e
filas-de-mãos-dadas-da-batalha-até-à-foz, e
corpos enlaçados no cansaço da manhã, e
martelos de S. João desfeitos, um dia depois.

Bom dia

De S. João, S. João, S. João, dá cá um balão...

quarta-feira, 8 de abril de 2009

...Smile

Os turistas

Lá estava eu, entretido a preocupar-me com a despreocupação dos outros que iam passando, quando dois turistas me pediram para lhes tirar uma fotografia. Fizeram a pose habitual do casal envolto na paixão que as férias e o calor do Verão reacendem - estavam prontos, sem dúvida. Segurei a máquina fotográfica, encostei o olho no visor e, de repente, vi-me do outro lado, abraçado aos sonhos da adolescência que nenhuma fotografia conseguiu guardar - memórias por revelar, talvez. Era notória a impaciência dos turistas, que acenavam fora do alcance da objectiva; mas o meu objectivo era outro, e fui rodando a máquina fotográfica, como uma criança à procura dos porquês.

Cá estava eu, despreocupado perante a preocupação dos outros; um deles, aproximou-se e, enquanto recitava qualquer coisa que preferi entender como um "obrigado", arrancou-me a máquina das mãos - quase me apeteceu chorar, e talvez tenha feito birra, não me recordo bem; do que me lembro, por outro lado, é de a ter ouvido disparar, algures, mas não faço a mínima ideia do que aparecerá na fotografia. Ora, como tinha mais com que me preocupar, pus-me, de novo, a observar a despreocupação dos outros que iam passando.

Bom dia

Simon says...

domingo, 5 de abril de 2009

De la musique - Pixies



Tema: Where Is My Mind?
Intérprete: Pixies
Álbum: Surfer Rosa (1988)

As imagens são de Fight Club, um filme intenso de David Fincher, realizador de Seven (um dos meus filmes preferidos) e de The Game.

Em frente mora nenhures

Focos de luzes bêbadas rasgam a noite;
para trás, a orgia da música e dos corpos,
e alguém desce em direcção ao mar.
Desce, desce que não chega, a projecção de si próprio,
figura sinuosa feita de rum e de tabaco.
Abram alas para o silente sopro dos náufragos:
em frente mora nenhures.

Sem retorno

Encarou a placa onde outrora refulgiam promessas de destino certo. As letras haviam caído, sobrava apenas um rumor de sílabas, coberto pela fuligem dos sonhos. Dois passos à frente, uma porta sem número, um edifício em ruínas. Um fogo súbito gelou-o. Quis desesperadamente arder, recuperar o rubro dos lábios, o suco da carne, cálido, inebriante... gélido, um rosto mortiço olhando-o em silêncio... a brisa dos dedos calando tudo em seu redor, os olhos magos enganando o tempo... o grito ensurdecedor da sepa-
ração, a sombra dilacerante de um vulto que parte. Correu, fugiu alucinadamente daquela imagem inconstante. Ruas, esquinas, vultos, gestos, ecos, sombras, silêncio, noite, de novo a noite e o silêncio, e a mesma rua, e a mesma porta, e as paredes estreitas, claustrofóbicas, e uma cama vazia, e este corpo rasgado, espalhado pelo chão.

Siga

Pára, buzina, arranca.
Tanta pressa de chegares algures.
O relógio marca sete em ponto de chocolate.
Hora de mágicos ganzaços. Vêem-se coisas.
A não perder. Vêem-se coisas.
Vestem-se cantos curtos de sereias, ao anoitecer.
As mãos vagueiam pelos bolsos, ao anoitecer.
Um dedo ergue-se, ao anoitecer,
e pergunta, cheio de poesia: quanto é?
É, no rumoroso anoitecer, acendem-se luzes e sinais
- tantos pontos cardeais, tantos pontos cardeais!
Acidamente, todos eles convergem para a Xploit.
E os corpos dançam - vêem-se coisas - os corpos suam,
os corpos bebem, bebem segredos de licor.
Romanticamente, alguém pergunta: queres?
Quero - o verso abrupto -, e os corpos rolam.
Os corpos rulam, acidamente. Sex rules!
E mais, que se vê mais?
O gHiclógio marca séSnifte em ponto de cocalate.
Pára, buzina, arranca.

Bom dia

Reload.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Invicta

A praça de Mouzinho de Albuquerque.
De frente para um Península parcialmente coberto de verde (as árvores abundam por aqui - abundam... enfim, no meio de tanto betão, até uma árvore parece uma floresta), dou comigo a perguntar-me o que faz esta estátua de fardas e canhões, plantada no meio do jardim. O leão esmagando a águia, uma data distante, o brasão da cidade... desta Antiga, Mui Nobre, Sempre Leal e Invicta Cidade do Porto.

Desta Antiga, Mui Nobre, Sempre Leal e Invicta Cidade do Porto... (Oh, valha-me Nossa Senhora!) De onde vem, então, este fragor de máquinas, este rumor de injúrias, este grito de guerra que todos os dias invade, pela manhã, esta cidade de epítetos e de lendas? Antigamente... sim, antigamente - antes ainda desse célebre ano de 1809 -, quando se construíam no Douro as naus das grandes conquistas, que levariam a carne e deixariam as tripas... «Valeu a pena?» Que sei eu disso? Que sei eu destes sacrifícios de outrora, deste cenário de guerra aqui enraizado, desta máscara de destemor e indolência no rosto dos soldados?

Uma criança Antiga pede esmola pelas ruas, e o Mui Nobre cidadão atira-lhe a moeda da purificação. A Sempre Leal esposa planeia o fim-de-semana com o amante casado. O operário recebe o ordenado miserável das garras do patrão... Recebeu, mas não gastou, porque o amigo do alheio teve a gentileza de lhe aliviar a bolsa Invicta. E, já agora, eu (não sei se santo ou se crente), que mais não faço do que apontar o dedo a tudo. Que ergam estátuas que nos detenham a todos, e mais estátuas para que se celebre esse feito. Que pintem símbolos pelas casas para que reluzam de noite, enquanto todos dormem. Todos? Não, nem todos, que lá do alto Ele observa, atento, este caos em harmonia, este pão esmagado, dia-a-dia desta Cidade (da) Virgem.

De la musique - Louis Armstrong



Tema: What a Wonderful World
Intérprete: Louis Armstrong
Álbum: What a Wonderful World (1968)

Poema a Louis Armstrong

Quando a manhã rebenta,
e com ela todo o alarde da metrópole,
é quando as ruas se entopem de stress,
e as pessoas correm desamparadas
para a rotina de mais um dia.

Quando o chinfrim mecânico das viaturas se confunde
com os insultos programados dos condutores impacientes;
quando as filas para o autocarro crescem caoticamente,
e já todos - qual acesso desvairado de ira e revolta -
cerram os dentes e vomitam fogo pelos olhos;
é quando as pombas pousam no bronze dos heróis petrificados,
e os sinos da igreja tocam.

Quando o sol cai, esgotado,
e os corpos recolhem, atordoados, aos seus lares;
quando os pais, no conforto dos seus sofás,
ressonam aos filhos moralismos e ave-marias;
é quando a TV se entretém com relatos exaustivos
de fome, desgraça e audiências,
e, de seguida, o artista parte o pescoço ao mau da fita,
em mais uma sessão especial.

Quando as portas dos cafés se fecham a medo;
quando ladrões, prostitutas, proxenetas
e um ou outro carro da polícia, que não destoa,
rondam cantos e esquinas da noite;
é quando as discotecas fabricam, em série,
enchidos de adolescência e ecstasy,
e, à porta dos cofres já cheios,
desfalece mais um puto com o rosto desfigurado
por um segurança qualquer
(que no fim do mês recebe a sua comissão,
apetecível, não declarada
e, de quando em vez,
um tiro nos miolos como bónus).

Quando, contagiado com todo este torpor,
eu me deito, insensível, na minha cama,
é quando estendo o braço até ao comando do rádio:
"... and I think to my self: what a wonderful world..."

Bom dia

Loaded and ready to shoot.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

O mais velho ritual da degradação humana

Desceste a rua.
Estavas ebriamente contagiado pela
leviandade do teu corpo.
Obedientemente o transportaste pelas esquinas,
onde as sombras ocultas da noite o ansiavam.
Viste braços estenderem-se,
como mendigos reclamando por alma;
roupas curtas e palavras inevitavelmente obscenas
sugarem-te da mente as partes meramente resistentes.
Cedeste - há muito que tinhas cedido.
Entraste religiosamente
no mais velho ritual da degradação humana:
escolheste a carne, ela, o quarto,
pagaste, ela deixou-se usar. E
saíste com a perfeita ilusão de seres Homem,
só porque saciada estava a efemeridade do prazer.

De la musique - David Bowie



Tema: Heroes, Look Back In Anger
Intérprete: David Bowie
Álbum: Christiane F. Wir Kinder [Original Soundtrack] (1982)

Bom dia

Um dos primeiros livros que eu li foi Os Filhos da Droga, a história dramática de Christiane F., uma adolescente que aos 12 anos se viu mergulhada no submundo das drogas. Li o livro apenas uma vez, numa altura em que ainda não tinha maturidade suficiente para assimilar a plenitude da mensagem. Mas guardei, porque me marcaram, os relatos pormenorizados de uma vida agridoce: de um lado, o prazer efémero, o poder ilusório, um universo paralelo onde os problemas do quotidiano não entravam; do outro, o pânico, o desespero, a queda abrupta numa realidade adiada, agravada pela ausência da agulha mágica com a poção milagrosa e... mentirosa. As duas faces de uma moeda maldita e intemporal que muitas vezes se confundiam.

Mais tarde, o livro deu origem a um filme de Udi Edel, com banda sonora de David Bowie, que eu também tive oportunidade de ver.

Infelizmente, o final feliz da história, com Christiane "limpa" de drogas, foi apenas mais um capítulo da vida atormentada de Christiane Vera Felcherinow.

domingo, 15 de março de 2009

De la musique - Björk



Tema: All Is Full of Love
Intérprete: Björk
Álbum: Homogenic (1997)

All is full of love (III)

Fechem os olhos os corações mais delicados:
a serpente tem rosto de anjo e corpo de maçã.
Fiz-lhe dois versos, retribuiu:
dois meses de cambalhotas e outros malabarismos,
pelos lençóis verdejantes da falsa ingenuidade.
Não, não me ofereçam lágrimas, ou ainda fico sentimental.
Não merecemos lágrimas.
Nem esperança.

All is full of love (II)

Estava eu aqui entretido a vestir o mundo de luto,
e vens-me tu, com olhos de Abril e corpo de Julho,
estupidamente irresistível. Isso não se faz.
Por tua causa borratei a página de baba-rosa.
E agora o enterro, faz-se, já não se faz?
E como tiro este sorriso idiota, pendurado nas orelhas?
Não tarda nada, e ando pelas ruas a distribuir "olás".
Não, não pode ser. Recomecemos: oh!
triste sina, peste de vida "bom-dia"
em queda livre nos teus seios...
(Desconcentras-me.)

All is full of love (I)

Teus lábios sacarinos, piperáceos,
fluindo na lagoa do meu palato,
um sorriso desenhando-se, em giesta,
e essa voz de orvalho desdobrando-se.
É primavera nos campos e no desejo.
É manhã imensa, em segredo, no teu "bom-dia".

Bom dia

Já cheira a Primavera.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

De la musique - Portishead



Tema: Glory Box
Intérprete: Portishead
Álbum: Dummy (1994)

Cidade

É Domingo nas ruas e nos sentidos.
Os semáforos bocejam,
gaivotas de papel recortam um céu espesso e sombrio,
sob o qual a cidade dorme.
É tempo de café e de cigarros.
Monsieur Cara-de-Frete, b'dia e rebuçados,
o resto você já sabe: a chávena no balcão sujo
e um ecrã ilegível, pendurado na parede, em harmonia universal.
Não lhe achou piada, paciência.
Sair, sair o quanto antes.
Começara a chover copiosamente.
Impunha-se uma pausa contemplativa sob o alpendre.
Barbitúricos pensamentos, mais cigarros e um olhar que não regressa - os suspeitos do costume.
Headphones, Portishead - 'it´s time to move over' -,
aperto o casaco e sigo, sigo o rasto de nenhures.
É esta a minha cidade, cheia de ninguém,
o absurdo em cada esquina indicando o caminho,
grandes planos para futuros riscos na pele entorpecida.

Bom dia

De chuva.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

De la musique - Sigur Rós



Tema: Olsen Olsen
Intérprete: Sigur Rós
Álbum: Ágætis Byrjun (1999)

Com os devidos agradecimentos ao autor do vídeo.

Janeiro

Janeiro cobriu a cidade com uma clareza enigmática. Flocos de memória oscilam em meu redor, como um pêndulo avariado. Recordo um Inverno antigo, quando o azul celeste dos sonhos aquecia as tardes mais frias de Janeiro. Quando nevava, a questão existencial era quem abraçaria primeiro o manto branco que cobria o solo. Não havia frio capaz de quebrar o fulgor com que decifrávamos cada momento. Hoje, caminho sobre uma página vazia, sem saber o que escrever ou agarrar. Um vento árctico varreu-me os sentidos: não ouço, não vejo, não sinto.
Janeiro já não me fala.

Bom dia

Frio.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Bicicleta azul

Bom dia

Cinzento na Trofa, azul na Madeira.

domingo, 4 de janeiro de 2009

De la musique - Lali Puna



Tema: Middle Curse
Intérprete: Lali Puna
Álbum: Scary World Theory (2001)

Desabrigo

player emergente skin incandescente media aurora
boreallis nos ouvidos sinfonias de cores scary
world theory mas calma o mundo não desaba que
ainda não me falaste in contratempo so sing me
enquanto paira a harmonia sobre o pensamento don't
think antes este ritmo nin-com-pop estaladiças
popcorn e lábios de morango de mãos dadas puxo-te
come on home ao desabrigo dos sentidos lali
lali porque te toca já o previsível desfecho
de uma voz abruptamente interrompida?

De la musique - Funki Porcini

Por falar em harmonia do caos. Ou seria caos da harmonia?
Porcini explica. Eu vou dormir.



Tema: The Big Sea
Intérprete: Funki Porcini
Álbum: Fast Asleep (2002)

Reticências

Uma porta entreaberta,
um feixe de luz que da clausura se liberte,
um olhar que ainda espreite,
um desejo que da sombra se levante,
qualquer coisa...
Qualquer coisa que, no horizonte, esse ocaso apressado,
escreva com sede e com delonga,
em tons materiais ou de pura fantasia:
reticências...

Bom dia

Quero agradecer ao Blogger por ter recusado as (aproximadamente) 235619 tentativas de escolha do nome deste blog. Se assim não fosse, a esta hora este espaço corria o risco de ter como nome um cliché qualquer do tipo Lusco-fusco ou algum filosofismo semelhante a Harmonia do Caos. Além do mais, Desabrigo foi sempre a minha primeira escolha!