quinta-feira, 2 de junho de 2011

Baileys sunset

Sábado à tarde, uma daquelas tardes solarengas que terminavam invariavelmente na Foz. Sentei-me na esplanada, pedi um café e instalei-me comodamente, fumando cigarros contemplativos, saboreando a força apaziguadora do mar. Prefiro a Foz no Inverno porque não tem o rebuliço dos dias de Verão. No entanto, o céu aberto ia trazendo para a praia mais transeuntes do que habitualmente. Eu era um deles, alheio a todos eles. A minha presença era apenas física. A minha mente, essa movia-se com as ondas, longe, algures num lugar abstracto. Venerava aquela sensação de liberdade: poder largar os ponteiros do relógio, a rotina diária e entregar-me a um relaxamento absoluto. Entrava numa espécie de compromisso, sem compromisso - um até que a morte nos separe efémero - entre mim, a dança hipnótica do mar e um horizonte transparente, aberto até ao infinito. Tudo o resto desaparecia. Mas não naquele dia.

Ela sentou-se a meu lado, chamou o empregado e pediu um Baileys. Depois, saboreou-o lentamente, de olhos postos no mar. Ignorou-me por completo e, de repente, havia algo que perturbava a quietude das horas. Comportava-se com a naturalidade de quem me conhecia há anos. E ali ficou, sem dizer nada, olhando o meu horizonte. Entrei no jogo, ignorei-a e regressei ao meu sossego. A dada altura, a sua voz quebrou harmoniosamente o silêncio: «o mistério do mar é tão ilusório como um amante ocasional» - disse. Fitei-a demoradamente. Os olhos transparentes davam-lhes a veracidade necessária para um primeiro contacto. Os lábios, ligeiramente lambuzados de licor, adoçavam o momento. Quis beber mais: «e, no entanto, aqui estamos partilhando esse mistério, mesmo sabendo que é passageiro e que daqui a pouco a realidade tomará conta das nossas vidas». Sorriu. «Não necessariamente» - retorquiu.

O sol desceu pausadamente. Um sol diferente, não feito de silêncio e de mística, mas de sorrisos e de licor. A fome apertara e fizemo-nos à estrada. Percorremos a marginal, já com as primeiras luzes da noite bailando sobre o Douro, e parámos na Ribeira para jantar. Comemos carne e conversámos sobre coisas intensamente banais. Bebemos vinho e olhares eróticos. Corremos os bares, entre vultos coloridos, suor e música. Trepámos a madrugada, lambendo o desejo dos corpos. E regressámos ao carro para devorar o fogo acumulado. Adormecemos, já o sol se espreguiçava, enrolados e exaustos, perante o pasmo do rio.

A semana passara devagar. A caminho da Foz, não era pelo sossego da praia nem pelo quebranto das ondas que eu ansiava. As imagens do sábado anterior desfilavam na minha mente, como um filme por terminar. Fora assim toda a semana, tentando dar forma e sentido a algo que deveria ser de percepção imediata: a amante ocasional, lembras-te? Sim, lembrava-me. E aceitara-o: «sem nomes nem telefonemas no dia seguinte», assim combinámos. Seria um momento único, irrepetível. Mas, na verdade, eu queria repeti-lo, torná-lo parte da minha vida. E isto confundia-me. Passava tanto tempo a tentar quebrar rotinas, a procurar libertar-me dos compromissos diários e, de repente, dava comigo a tentar transformar a casualidade. Eu queria o nome, o número de telefone, qualquer coisa que não deixasse a possibilidade de revê-la à mercê do acaso. Vieram-me à mente as últimas palavras que trocámos: «E agora?» Deu-me um beijo na face e respondeu-me com um ar despreocupado: «quem sabe?»

Cheguei à Foz bastante antes do habitual. Pedi um café e reparei em tudo o que que se movia. Fumava desenfreadamente e até o ruído das ondas me incomodava. Estava fora de mim. Não no horizonte defronte, mas no que ficou para trás. Levantei-me e vagabundeei pelos arredores, à procura de um sinal... em vão. Regressei à esplanada e, instintivamente, pedi um Baileys. O empregado trouxe-o juntamente com um bilhete «da menina que esteve consigo na semana passada». Demorei a abri-lo. Fixei o olhar no líquido espesso e apetecível, imaginando os lábios dela, aquela voz feiticeira que adoçava as horas. Não era possível adiar mais. Desdobrei o papel, duas palavras preenchiam-no: «Obrigado. Mariana». Bebi o Baileys de um só trago e senti as letras escorrerem-me pela garganta abaixo, até assentarem no estômago. Puxei de um cigarro, acendi-o e deixei que se esfumasse no ar o hálito ainda quente da pele de Mariana. Sentia-me estranhamente conformado, como se um simples nome tivesse bastado para que o filme deixasse de correr indefinidamente e se fixasse como fotografia na memória.

Regressei ao ritual habitual: os olhos no mar e a mente lá longe do mundo e das pessoas. Ah!, a minha zona de conforto, sem compromissos nem rotinas, a liberdade absoluta. Porque é que não tinha o mesmo sabor? Tudo tem um preço, meu amigo. «Por favor, dá-me lume?» - uma voz suave interrompeu a moral da história. Acedi e, ao olhá-la, perguntei-lhe impulsivamente o nome. «Ana» - respondeu, com um ar meio intimidado. Convidei-a a sentar-se para tomar qualquer coisa. Ela hesitou, mas lá cedeu: «pode ser um Baileys». Sorri - e que bem que me fez sorrir de novo. Afinal, tinha o mar diante de mim e a Ana a meu lado...

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