quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

De la musique - The Walkmen



Tema: Wake Up
Intérprete: The Walkmen
Álbum: Everyone Who Pretended to Like Me Is Gone (2002)

Sono lento

Cinco da manhã. O meu coração está vazio, mas a minha mente fervilha de sintaxe. A noite, sempre a noite. Não está ninguém. A cidade dorme. Ouve-se, algures, o chilrear dos pássaros. São os primeiros a acordar. Eu, pelo contrário, gostava era de dormir. Não tenho sono. Fumo um cigarro a olhar para o céu (como se o céu tivesse alguma coisa para acrescentar à minha vida).

Há pouco orvalhou. Uma ténue camada de água cobre a rua, os edifícios, a realidade. Adoro água. Por vezes, penso que devia ter nascido peixe. Vaguearia pelo mar, vendo tudo em meu redor pela primeira vez, de 6 em 6 segundos, e esquecer-me-ia desta angustiante realidade de me lembrar, de 3 em 3 segundos, de que não tenho sono. Mas, claro, alguém tinha de estragar tudo e descobrir que, afinal, a memória dos peixes é bem maior do que se pensava. Azar. Agora não vou apagar o que está para trás. Resta-me, portanto, esperar pela onda certa e transformar-me a tempo de te encontrar deitada na praia, numa noite de lua cheia. Sim, pousava a mão no teu rosto, lia o teu olhar, e partiríamos sem palavras para uma noite paralela onde dormir fosse dispensável, e uma alvorada generosa nos cantasse um amanhã por revelar.

Infelizmente, a cidade desperta, e o rebuliço habitual traz-me de volta uma manhã repetida. Os pássaros já não cantam. Mergulho na soporífera multidão, deixo-me levar pela corrente. Posso dormir, finalmente.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Ilusão

Não digam,
já sei que resido num tempo abstracto e factício.
Nem eu próprio me reconheço.
Este corpo mortiço, estes olhos cravados de linhas
(caminhos, caminhos, caminhos)? Tudo ilusão.
O que fui? Miragem, ilusão. O que sou? O que fui, ilusão.
E se alguma porta entreaberta, brisa ao de leve,
luz no fim da frase, faz sentido,
fechem, cubram, apaguem,
é tudo ilusão.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

De la musique - Broken Social Scene




Tema: Shampoo Suicide
Intérprete: Broken Social Scene
Álbum: You Forgot It in People (2002)

Voltar a página

Retomas o branco da página no preciso ponto.
Parágrafo segundo - deixemos as precisões.
Um rio desliza, cheio de peixes mortos.
O olhar persegue-o, devora-o a avidez do
parágrafo terceiro. Voltar a página?
Inútil. A acção detém-se na língua, enrola-se
no pescoço e, pacificamente, aperta-o.
O que fazer? O que fazer? - Maquinas deliciosamente.
O sujeito muda por motivos de forca maior,
meticulosamente, preparo um sorriso de não foi nada,
torradas de já passou para o pequeno-almoço.
E deixo o branco da página no preciso ponto.

Bom dia

Fim do intervalo.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

De la musique - Fred Everything


Tema: Elevate (Maurice Fulton Remix)
Intérprete: Fred Everything
Álbum: Future Sounds Of Jazz Vol. 10 (2005)

Amor ao primeiro tom

Bastou-lhe ouvir a sua voz
para ficar louco!
A sua forma
redonda, apetecível,
deixou-o completamente rouco!
Alguns dirão:
pensa com as calças...
Mas não é bem isso;
é o interior, a substância,
que fala mais alto do que ele.
E bastou-lhe ouvir a sua voz
para roçar o céu!

Bom dia

Intervalo.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Onde está a pureza inicial?

A transparência dos sentidos,
a água corrente, o sonho lúcido
- espelho de mim próprio -,
onde está?

A chama, o sal
- o paladar essencial -
na garganta, (a voz),
onde está?

A estranheza, a diferença,
a presença ou a saudade
- se saudade for ter-te aqui -,
onde está?

Onde está tudo isto,
ou qualquer coisa que seja?
Ou, até, coisa nenhuma!
- se nada for o mesmo que,
simplesmente, adormecer...

De la musique - The Sound



Tema: Winter
Intérprete: The Sound
Álbum: Shock of Daylight (1984)

Memória

Um rasgo de vento
no branco espesso das nuvens,
e neve
cobrindo os picos das montanhas.
Frio, muito frio
nos ninhos e nas covas.
A queda lenta das aves,
o cansaço da lebre-alpina
e, sonolentas, as crias
encolhendo-se
sem perceberem a ausência de sol
neste quadro de ninguém
chamado memória.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

De la musique - Cocteau Twins





Tema: Memory Gongs
Intérprete: Cocteau Twins
Álbum: The Moon and the Melodies (1986)

Não há memória

Uma gaivota recorta o horizonte.
Leva a saudade no bico.
Um sonho inacabado perde-se na bruma da manhã.
Já nem as ondas o trazem...
Já nem o mar me traz de volta.
Ao longe houve um barco
e, certamente, alguém no leme.
Do tempo veio a tempestade.
Mas onde estão os náufragos?
Nem um só arrepio.
Não há silêncio maior do que este que me invade os olhos.
Vem o branco sobre a página.
Não há memória.
E um sono que nem leve nem profundo
toma conta do resto.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

De la musique - Interpol



Tema: [Untitled]
Intérprete: Interpol
Álbum: Turn on the Bright Lights (2002)
Aceita que o leito do rio onde
se banhavam os teus sonhos secou;
que os peixes que trazias nas
mãos não passavam de metáforas de papel
sob um céu feito de chumbo.
Aceita o silêncio das horas,
cala o grito inconsequente das sobras,
não fales, não penses, não sintas,
não escr

sábado, 8 de janeiro de 2011

(A)void


Christian Robert-Tissot

Começo a conhecer-me

«começo a conhecer-me não existo» disse recolhendo-se na
sombra das palavras «riscos moles e cinzentos» moles cinzentos
riscos moles e cinzentos observando-me do fundo da frase moles
cinzentos riscos cinzentos moles e as letras cercando-me o papel
afundando-se os olhos cobertos de tinta veneno na
língua as mãos coladas ao abismo cair cair ininterruptamente no
vazio sugado por cinzentos riscos moles cinzentos mol ri s
zen mo r is começo a conhecer-me não existo

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

De la musique - Tori Amos

Mais chuva.





Temas: Northern Lad, Liquid Diamonds
Intérprete: Tori Amos
Álbum: From the Choirgirl Hotel (1998)

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

De la musique - Televise

Um álbum que tem andado no modo replay, cá por casa. Deve ser da chuva.



Tema: If I Told You
Intérprete: Televise
Álbum: Songs to Sing in A and E (2006)

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

De la musique - Björk

Hoje, apetece-me ouvir Björk.



Tema: Immature
Intérprete: Björk
Álbum: Homogenic (1997)

O pequeno Rúben

Cruzaram-se na rua, por acaso. Olharam-se demoradamente, como que absorvendo pequenas metamorfoses - fazia anos que não se viam.

Ela sempre tivera um sorriso escondido na face. Mesmo nas palavras frias, conseguia ver-se numa qualquer expressão incontida aquele sorriso, por vezes meio sorriso, um esboço, que fosse. E isso, a ele, bastava-lhe, mais do que qualquer palavra. Na verdade, raramente havia grandes palavras. Em vez disso, gestos que se soltavam de onde menos se esperava e pairavam sobre eles num silêncio provocador. Então, tudo acontecia muito rapidamente, como se uma fenda no tempo os transportasse para fora de onde quer que estivessem, e devoravam-se com a avidez do primeiro encontro, quando tudo ainda está por descobrir. Depois, tudo voltava ao ritmo lento dos seus dias, entre conversas de café e passeios contemplativos à beira-mar. Nunca dera grande importância a esses pequenos momentos. Hoje vê-os como o que de mais próximo pode haver da felicidade.

(Será a felicidade assim tão banal?) Aquele pensamento súbito e contraditório fê-lo regressar àquela rua antiga onde, por acaso, se encontraram. Trocaram palavras breves. Ela havia casado; falou-lhe do pequeno Rúben, que tinha agora seis anos - a vida parecia correr-lhe bem. Sentiu-se feliz por ela, mas ao mesmo tempo invadido por uma estranha melancolia. Sentiu que os momentos que ainda há pouco recordava deixaram de ser exclusivamente seus, talvez até totalmente. Eram agora pertença de outro e do pequeno Rúben. Ela perguntou-lhe o que era feito dele, de sua vida. Que estava óptimo, que também ele tinha casado e mudado para uma casa maior, que ocupava agora um cargo de maior responsabilidade na empresa (enfim, feliz e contributário, como um bom chefe de família). Puderam, então, despedir-se (mais uma vez, talvez para sempre), e foi então que ele percebeu que pela primeira vez lhe havia mentido (mentido com quantos dentes tinha).

A noite caíra sem aviso prévio. Na sua mente ecoavam ainda as palavras de Margarida. Imaginou-a com o filho nos braços, um miúdo que poderia perfeitamente ser dele. O seu futuro, a sua felicidade entregues ao desconhecido. Uma parte dele morreu ali, naquela rua desencantada, debaixo de um céu sem lugar para estrelas. A outra procurou o bar mais próximo. Era tempo de esquecer o pequeno Rúben e brindar ao que sobrava de si.