Era noite escura. Passo curto, pesado, Miguel deambulava pelo negrume da estrada com o remorso estampado no rosto. Apenas o quebranto das ondas e a maresia o orientavam, lembrando-lhe, a espaços, que a praia estaria por perto. E lá continuava. O vento fustigava-o como o silvo de um chicote. Os olhos escorriam-lhe corpo abaixo, procurando em cada passo a razão da sua vinda. Perseguiam-no vozes de origem incerta. Só o tom era o mesmo, sempre o mesmo, meigo e tormentoso, proibido, irresistível. «Porque me cantas assim?» - interrogava-se. Mas, logo, o vento, sem tempo para lamentos, arrastando-o, empurrando-o para um destino que, mais cedo ou mais tarde, iria ter de enfrentar.
Quando, finalmente, chegou à praia, sentiu os sapatos a escaparem-se-lhe dos pés para o areal húmido e frio, e, instintivamente, aproximou-se da água. Debruçou-se sobre o enredo que esperava ansiosamente decifrar e viu-os: duas silhuetas enroladas na luxúria que a maré trazia de volta. Abraçava o ar como que recuperando o fulgor daquela noite: «para sempre o meu corpo no teu» - promessas, doces promessas. Mas, sempre, o açoite do vento, autoritário. «O que fazer?» - a derradeira, circular questão.
Quando, finalmente, chegou à praia, sentiu os sapatos a escaparem-se-lhe dos pés para o areal húmido e frio, e, instintivamente, aproximou-se da água. Debruçou-se sobre o enredo que esperava ansiosamente decifrar e viu-os: duas silhuetas enroladas na luxúria que a maré trazia de volta. Abraçava o ar como que recuperando o fulgor daquela noite: «para sempre o meu corpo no teu» - promessas, doces promessas. Mas, sempre, o açoite do vento, autoritário. «O que fazer?» - a derradeira, circular questão.
A bruma caíra sobre o corpo desfalecido. Miguel despertou abruptamente do que por segundos (que tentou prolongar em vão) lhe pareceu ter sido um pesadelo. Sentia o tempo a escoar-se, a roubar-lhe a pouca lucidez que lhe sobrava. Num rasgo de coragem, levantou-se, decidido, e fez-se à estrada.
A viagem era longa. As imagens que desfilavam no vidro dianteiro do automóvel foram dando lugar a outras mais antigas: os tempos em que Miguel e João estudavam Direito em Coimbra, as noitadas de farra, os amigos... «Sim, os amigos, mas de que vale a amizade aos pés daquele corpo, daquele rosto, daquela voz?»
Recordou o dia em que Anabela apareceu nas suas vidas, entre dois copos e as gargalhadas da noite: aproximou-se, de sorriso aberto, pediu-lhe lume; João antecipou-se - os dados estavam lançados. Anabela era uma mulher extrovertida e ousada, mas trazia com ela uma docilidade desconcertante. Era insaciável, devorava toda a atenção que lhe era dada com a avidez de uma predadora. Depois, novamente o sorriso, inocente, provocador.
Recordou o dia em que Anabela apareceu nas suas vidas, entre dois copos e as gargalhadas da noite: aproximou-se, de sorriso aberto, pediu-lhe lume; João antecipou-se - os dados estavam lançados. Anabela era uma mulher extrovertida e ousada, mas trazia com ela uma docilidade desconcertante. Era insaciável, devorava toda a atenção que lhe era dada com a avidez de uma predadora. Depois, novamente o sorriso, inocente, provocador.
João apaixonou-se imediatamente e, três meses depois, casaram-se. Desde esse dia que Miguel carregava com ele um estranho sentimento de perda.
Mas o casamento já vivera melhores dias e, lentamente, Anabela foi-se aproximando de Miguel, desabafando as mágoas, semeando o pecado - que há muito brotara na mente dele - até que tudo se precipitou: a praia acolheu-os, a noite ofereceu-lhes a maçã da serpente... «e o veneno corrói-me as entranhas» - pensou, ao avistar a casa de João.
Ao aproximar-se da porta, sentiu as pernas a fraquejarem-lhe. «Que lhe vou dizer? Como o vou poder encarar depois?» - repetia-se. O medo apoderou-se dele e pensou em ir-se embora, mas não havia como escapar da sua culpa. Tocou à porta.
- Ainda bem que vieste! Entra! - João afastou-se como viera: com a pressa e o olhar de um tresloucado. Miguel estremeceu. «É agora... já sabe, por certo... mas... como?» Sentiu um nó na garganta, mas lá cambaleou porta adentro.
- Como foste capaz, diz-me?! - parecia certo o fim da mascarada.
- João, eu...
- E logo com o meu melhor amigo! Se apanho aqueles dois, nem sei o que lhes faço!
Foi como uma pedra num imenso charco. As dúvidas alastraram-se de tal forma que, por instantes, pensou que fosse alguma brincadeira de mau gosto. Ainda hesitou, mas lá balbuciou:
- Aqueles... dois?!
João nem o ouvia, esgravatava o ar de alto a baixo e lá se entretinha a blasfemar.
- Ah, mas isto não fica assim! Eu vou descobrir para onde foste!
«Mas... será possível?!» - fez-se luz, de repente.
- Mas do que falas, afinal?! - quis confirmar.
João fitou-o com a surpresa de quem ainda não o tinha visto e retomou o discurso:
- Do que falo?! Eu digo-te do que falo! Aquela ingrata! Depois de tudo o que fiz por ela! Quem me manda a mim confiar em advogados?! São todos da mesma laia!
Palavras de um advogado - caiu no ridículo.
- Acalma-te. Conta-me tudo.
Sentaram-se. João procurou o copo pousado sobre a mesa, encheu-o de whisky e bebeu-o de um só trago - apenas o álcool parecia atenuar a sua ira.
- O Zé... tu sabes... que estudou connosco em Coimbra... e a Anabela... - fugiam-lhe as palavras para um sítio que há muito se adivinhava - a culpa é minha! - descaiu-se - a semana passada cheguei a casa e... - encheu de novo o copo, para o esvaziar de seguida - enfim, sentiu o cheiro de mulher... desconfiou... e eu, esta grande besta, contei-lhe! - novamente a dança do copo e do whisky.
- E contaste-lhe o quê? Não bebas mais, que já nem sabes o que dizes...
- Pois não sei o que digo! E a prova é que lhe disse!
Bebia e bebia... e, a cada sorvo, Miguel parecia sentir-lhe o travo. Uma estranha repulsa dominava-o, agora. Onde estava o tormento do remorso? Perdera-se, por certo, no meio de toda aquela trama.
- Ela não era nada para mim. Eu expliquei-lhe. Uma descaidela, nada mais. Que diabo, somos homens!
«Sim, somos homens... e temos o que merecemos.» Ecoavam-lhe nos ouvidos as palavras do outro: «como foste capaz?» Esquecido estava o motivo que o arrastara até ali.
Miguel regressou à praia. Sentado na areia, procurou, em vão, as imagens... o cheiro... a voz... - nada. Apenas e só o vazio, preenchido, aqui e ali, com as palavras do outro: «como foste capaz?» Escutava-as como se fossem suas. Fora-se com Anabela o que restava da honra, da lealdade ao amigo de longa data. Eram agora palavras ocas, sem essência, sem sentido. Ficara somente uma estranha indiferença, quebrada, momentaneamente, por um pensamento absurdo: «talvez ainda voltes.» «Não! Não pode ser!» - sacudiu a ideia, limpou os olhos. Uma lágrima caiu desamparada sobre a areia e, escorrendo como se tivesse dor própria, escreveu: «a traição não tem dono». Miguel sorveu demoradamente a frase, procurando nela algum tipo de conforto, mas a revolta arrancou-o do chão e pateou furiosamente o baixo-relevo das letras.
«Porquê?» - interrogou-se ao desaparecer na escuridão.